Questão de Opinião: Reflexões sobre crianças e adolescentes no tráfico do RJ

O emprego das crianças-soldado é apenas uma das formas de violência contra a infância. O envolvimento dessas crianças em conflitos armados, convivendo com as partes beligerantes, portando armas, matando e morrendo gera desconforto e incômodo, pois reúne dois mundos aparentemente separados: o da criança e o do adulto. Porém, existem outras manifestações da violência contra a criança que não são menos preocupantes e estão presentes cotidianamente no Brasil. É o caso do envolvimento de crianças e adolescentes – meninas e meninos – no tráfico de drogas. Ao contrário das crianças-soldado, os jovens do tráfico não necessariamente estão em um contexto de guerra ou conflito armado, mas ainda assim são afetados pela violência diariamente. Este fenômeno pode ser observado, sobretudo, em algumas comunidades do Rio de Janeiro.

A questão específica das crianças envolvidas no narcotráfico no Rio já foi objeto de estudos, de reportagens na mídia e de trabalho de algumas ONGs. O tema merece uma análise atenta devido à sua complexidade e aos fatores estruturais que envolve. Uma criança ou adolescente pode assumir diferentes funções no narcotráfico: vigiar e avisar sobre a chegada de forças de segurança ou grupos rivais, transportar armas e drogas, vender drogas, administrar bocas de fumo e utilizar armas em confrontos. Mas por que empregar pessoas de uma faixa etária tão jovem em atividades como essas?

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As crianças e os adolescentes podem representar vantagens imediatas para os adultos que as empregam no tráfico. Apesar da idade, já conseguem desempenhar suas funções com eficiência; conseguem utilizar armas leves; não enfrentam a mesma punição legal que os adultos e recebem um pagamento relativamente menor. Além disso, muitos jovens procuram esse tipo de atividade, pois alguns fatores estruturais os levam a isso. Situações de abandono afetivo; falta de estrutura familiar; dificuldade de continuar nos estudos e, futuramente, de ingressar em uma universidade; necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar; dificuldade de conseguir empregos formais; discriminação racial; baixa perspectiva de ascensão econômica e social; falta de apoio para se inserir em atividades culturais, e contato com parentes e amigos que já estão envolvidos no tráfico também contribuem para que a juventude enxergue nesse trabalho um caminho. Assim, as atividades no tráfico representam uma possibilidade de obter status social e ganhos econômicos difíceis de serem alcançados de outra forma. Existe, pois, a percepção de que entrar para o tráfico é uma forma de compensar parte das desigualdades e injustiças sociais a que são constantemente expostas.

Prevenir que crianças e adolescentes participem do narcotráfico envolve, necessariamente, discussões mais amplas sobre desigualdade econômica e social, racismo, educação e cultura, trabalho infantil, legalização das drogas e as funções da polícia e das forças armadas na sociedade. Tocar nesses pontos demanda um esforço de diálogo entre vários setores da sociedade, mas é um esforço essencial, visto que a compreensão dessas questões mais profundas e das conjunturas nas quais as crianças estão inseridas afeta diretamente a forma pela qual as pessoas – não apenas as crianças – das comunidades em conflito são tratadas.

Outro ponto fundamental é o entendimento e reconhecimento das crianças como atores capazes de expressar opiniões e realizar mudanças em suas comunidades. Geralmente, as crianças e os adolescentes são caracterizados como seres passivos, imaturos e, muitas vezes, são apontados apenas como vítimas das situações que os atingem. Ou seja, há uma idealização e universalização, sobretudo do conceito de criança, atrelado ao imaginário de que o jovem é somente um receptáculo do mundo adulto, isto é, observa e absorve passivamente o que é imposto pelos adultos devido à falta de maturidade para uma reflexão mais aprofundada da realidade. Assim, crianças e adolescentes que fogem desse estereótipo são considerados “menos crianças”, no sentido em que estão mais distantes daquilo que é entendido como o universo infantil e mais próximos do universo adulto. Entretanto, crianças e adolescentes envolvidos no tráfico não são “menos crianças”. O que acontece é que suas respectivas infâncias foram construídas socialmente de uma maneira que lhes foi bloqueado o acesso a certos direitos que as pessoas pensam ser intrínsecas às crianças como educação, saúde, lazer e afeto. Apesar de existirem alguns documentos que tentam garantir direitos básicos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, isso nem sempre se torna realidade.

O que queremos ressaltar é que as crianças e adolescentes podem não se restringir ao papel de vítimas, visto que podem possuir capacidade para mudar suas realidades. Dizer isso não implica em defender a redução da maioridade penal ou punições mais severas para os jovens, pois essas atitudes agravariam a já preocupante marginalização da juventude das comunidades, além de aprofundar o abismo entre as diferentes infâncias que existem em uma mesma cidade: de um lado, os jovens que gozam de seus direitos, pois têm acesso a condições de vida mais privilegiadas e, de outro, essas crianças e adolescentes que convivem diariamente com a violência do tráfico, da polícia ou das forças armadas. Dizer que crianças e adolescentes têm capacidade de agir e são mais do que somente vítimas significa incluí-los em esforços para reduzir a violência e pensar medidas de redução das desigualdades e ouvir suas opiniões, reconhecendo-os como agentes transformadores e não como inimigos a serem combatidos.

A atual situação em que o Rio se encontra, sob intervenção federal, não melhora as condições de vida, tampouco confere protagonismo a esses jovens. Se, a princípio, pode parecer que as forças armadas fornecem maior segurança para as crianças que vivem nas comunidades, em um olhar mais atento percebemos que os fatores estruturais que citamos não são, de fato, resolvidos por meio do uso da força. Pelo contrário, a intervenção contribui para perpetuar a ideia de que as pessoas que moram nas comunidades são inimigos, não cidadãos. Revistar as mochilas das crianças não garante segurança e ainda escancara o quanto crianças e adolescentes das comunidades cariocas, majoritariamente pobres e negras, são tratadas de modo discriminatório.

A forma de lidar com crianças e adolescentes das comunidades reflete preconceitos estruturais de nossa própria sociedade e reforça a discriminação em nome de uma pretensa segurança e bem-estar dos jovens. A construção da paz passa, necessariamente, pela participação efetiva das crianças e adolescentes. A paz, nesse contexto, é entendida de forma mais ampla, como o pleno aproveitamento das capacidades de ação dos jovens, da melhoria das condições em que eles vivem e da redução das desigualdades. As crianças e os adolescentes ganham mais quando estão inseridos nos debates do que quando têm suas reais capacidades subestimadas.

Giovanna Ayres Arantes de Paiva, Doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

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